Gudit, a rainha judia da Etiópia
Uma mulher no século X, que desafiou o estado, a igreja e a dominação masculina
No chifre da África, em uma paisagem cortada por montanhas, vales, savanas, florestas tropicais e cedros, adornada por obeliscos funerários e antigas ruínas do primeiro estado cristão antes da conversão dos armênios e da cristianização da Europa, o império axumita floresceu por séculos, atingindo seu auge entre os séculos IV e VII e experimentando declínio no século X, em grande parte devido a uma figura feminina judia cuja existência é cercada por controvérsias e lendas.
A Rainha Gudit, também referenciada como Yodit e por vários outros nomes, como Isato (fogo) e Ga’wa, divide opiniões, assim como a Judite bíblica, considerada parte do cânone pelos cristãos, e uma obra de ficção para os judeus. A identidade de Gudit não é um consenso entre os historiadores. Alguns afirmam que a rainha era de origem pagã, especificamente da etnia sidama; outros dizem que Gudit foi uma mulher cristã, parte da família real etíope, que ascendeu ao trono devido à incompetência do rei Dagnajan. Outra lenda afirma que Gudit era uma bela e pobre prostituta da cidade de Axum, exilada por ter dormido com um padre, mesmo que ela tenha dito que a ideia era insana. O padre então a presenteou com um sapato e um véu dourado, o véu que ele roubou da Arca de Sião da catedral de Axum. Ela teria sido exilada devido ao sacrilégio e o padre foi declarado “inocente de culpa”, pois foi considerado apenas um menino antes de seus vinte anos.
Com diferentes lendas, cada uma agradando à diversidade de etnias e religiões da Etiópia e sem um consenso histórico acerca de Gudit, eu me apego, em uma perspectiva trans-judaica, ao mito que mais ressoa comigo. Nas Crônicas da Etiópia —um compilado de textos escritos ao longo dos séculos, da Antiguidade aos tempos modernos, em diferentes línguas como o ge’ez e o amárico, que oferecem uma cronologia da história etíope — Gudit, devido ao sacrilégio, foi severamente punida, tendo seu seio direito arrancado e sendo banida ao Mar Vermelho. Acabou sendo resgatada por Zenobis, um judeu, filho do rei de Sham (Síria), que a curou e se casou com ela. Gudit converteu-se ao judaísmo e, juntamente com seu marido, montou um exército e conquistou Axum. A conquista foi facilitada pela ausência do rei Dagnajan, que tinha partido para lutar contra as tribos árabes, mas falhou miseravelmente, perdendo-se no deserto. Após conquistar Axum, Gudit destruiu inúmeras igrejas e monumentos cristãos, incluindo a catedral de Axum, supostamente construída de pedras preciosas.
O emprego de tal punição — arrancar o seio direito de Gudit — era comum na Etiópia. Muitas mulheres tinham seu seio arrancado para se tornarem amazonas, engajando-se em caças e guerras. No caso de Gudit, a punição também serviu como humilhação pública. Assim como os eunucos, cuja castração representava a perda da masculinidade e a adoção de uma nova posição social, na Etiópia medieval, arrancar o seio de uma mulher era destituí-la de sua feminilidade, muitas vezes considerada o único poder que uma mulher poderia ter. A ideia era que, a partir do momento em que você é mutilada de alguma característica sexual, no caso dos seios, uma característica sexual secundária, mas símbolo da feminilidade e fertilidade desde a Antiguidade, você se tornaria uma pária entre as mulheres, motivo de desprezo entre os homens e subjugada a viver às margens. A lenda diz que, quando Zenobis a encontrou, ele perguntou a Gudit de onde ela vinha, e esta respondeu: “Eu não tenho nação e nem parentes, devido ao enorme mal que me fizeram”. Em uma perspectiva trans-judaica, como mencionei no parágrafo anterior, Gudit, com seu corpo forçadamente modificado, foi apenas restituída da sua feminilidade após seu encontro com Zenobis, que não só a desposou, mas juntos conquistaram Axum.
Gudit é um símbolo da perseguição que a milenar comunidade judaica da Etiópia sofreu perante as hegemonias cristãs e muçulmanas, sendo muitas vezes colocada em um lugar de subcidadãos e forçados à conversão. Gudit também representa o fim da dinastia salomônica em Axum e o início de um novo capítulo na história etíope. De prostituta a rainha, ela nos revela como na trajetória feminina é quase impossível escapar desses dois arquétipos e da narrativa de tragédia e ascensão. Foi uma mulher que desafiou o estado, igreja e a dominação masculina, salva pelo amor de um homem judeu e restituída de sua feminilidade e valor através do judaísmo. Um conjunto de obeliscos ainda estão de pé, na antiga cidade de Axum, lembrando a importância do legado de Gudit na história etíope.
O campo de estelas de Gudit localizado em Axum.
Fontes:
Gudit, a Jewish Queen of Aksum? Some Considerations on the Sources and Modern Scholarship, and the Use of Legends por Raita Steyn
The Queen of the Habasha in Ethiopian history, tradition and chronology por Knut Tage Andersen
Who are the Ethiopian Jews? por Mitchell Bard, disponível em: https://www.jewishvirtuallibrary.org/who-are-the-ethiopian-jews